O controle é uma etapa indispensável em qualquer ação realizada pelo ser humano, seja individualmente ou por meio de uma organização à qual ele se integre, e se destina a mitigar os riscos de que os objetivos traçados não sejam satisfatoriamente alcançados, ou que ocorram desvios e perdas que possam comprometer os fins originalmente planejados.
Pode até ser que não nos atentemos a tal fato, mas o controle está sempre presente em nossas vidas, em uma de suas vertentes: às vezes atuamos na condição de controladores, quando, por exemplo, verificamos se as atividades extraclasse dos nossos filhos foram por eles executadas nos prazos adequados. Em outros momentos, somos nós os controlados, como quando nossas funções laborais são supervisionadas por nossa chefia imediata no ambiente de trabalho.
Se no contexto das pessoas e das empresas privadas o controle é essencial ao alcance dos objetivos fixados, no setor público a sua relevância é acentuada, já que os recursos que financiam o Estado advêm, em sua maior parte, dos tributos pagos pela sociedade. Logo, esta deve obter a comprovação da boa e regular aplicação do patrimônio administrado por um agente por ela delegado para tanto, prerrogativa, inclusive, consagrada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, datada de 1789: “A sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração.”
Os agentes públicos estão sujeitos a uma série de controles. Em matéria administrativa, destacam-se aqueles exercidos por unidades integrantes da própria estrutura da entidade responsável pelo ato controlado (os denominados controles internos) e os promovidos por órgão apartado: o controle externo.
No que tange ao controle externo, a Constituição Federal de 1988 determina que o Poder Legislativo (as Câmaras de Vereadores, as Assembleias Legislativas e o Congresso Nacional) deve exercer a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial dos atos praticados pelo Executivo (Prefeituras, Governos Estaduais/Distrital e o Governo Federal/União).
Tal atribuição é desempenhada com o apoio dos Tribunais de Contas, órgãos constitucionais autônomos cuja principal marca deve ser a independência perante os agentes controlados, de sorte que o produto do seu trabalho agregue valor à gestão governamental por meio de encaminhamentos que contribuam para o aprimoramento da máquina estatal, previna e combata a corrupção e fortaleça a integridade e a transparência das organizações, principalmente daquelas responsáveis pela execução das políticas públicas.
Assim, o controle externo desempenhado pelos Tribunais de Contas se destina a examinar se os recursos públicos são aplicados de maneira eficiente, eficaz, efetiva, econômica e em conformidade com as regras, leis e com os objetivos localmente estabelecidos, de maneira a contribuir para o desenvolvimento sustentável, reduzir a ocorrência de fraudes, a pobreza e a auxiliar as instituições públicas a operar da melhor forma possível.
Papel do auditor de controle externo
Nos Tribunais de Contas, compete aos Auditores de Controle Externo a instrução dos processos fiscalizatórios nos seus mais variados tipos (levantamentos, inspeções, acompanhamentos, auditorias, monitoramentos, representações, dentre outros). Os auditores devem ser servidores efetivos (aprovados em concurso público de provas e títulos) de nível superior, capacitados para o exercício da função. Devem, ainda, agir de acordo com as Normas Brasileiras de Auditoria do Setor Público (NBASP) e possuir as competências comportamentais inerentes ao cargo: integridade, independência e objetividade, profissionalismo, confidencialidade, cautela e zelo, entre outras.
Além da instrução processual a cargo dos auditores, outras áreas dos Tribunais são igualmente importantes para a conclusão dos expedientes que neles tramitam: o ministério público de contas (que atua como fiscal da lei e avalia a validade processual, ou seja, o cumprimento de todos os seus princípios) e o Plenário, constituído pelos conselheiros (ou ministros, no caso do Tribunal de Contas da União) os quais julgam os processos. Há a possibilidade, ainda de decisões camerais (um certo número de conselheiros não representativo da totalidade) e monocráticas (por um único conselheiro).
A efetividade do controle externo perpassa pelo adequado funcionamento deste “tripé” estrutural dos Tribunais de Contas, pois assim como seria inócuo o desenvolvimento de uma auditoria de forma impecável sem o seu tempestivo julgamento pelo colegiado da Corte, de nada valeria julgar fiscalizações de acordo com prazos razoáveis caso tais trabalhos não tenham sido realizados em consonância com as normas, deixando margem a questionamentos quanto à sua credibilidade.
Contexto da cidade de São Paulo
No Brasil, existem 33 Tribunais de Contas, sendo que 2 deles estão localizados no Estado de São Paulo. O Tribunal de Contas Estadual é responsável pela fiscalização do Governo do Estado e de todos os municípios paulistas, à exceção da sua capital. Ao Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCMSP) compete a atribuição de fiscalizá-la. Há lógica nessa divisão de competências já que o orçamento da cidade de São Paulo, da ordem de aproximadamente R$ 69 bilhões em 2020, é o quinto maior do Brasil, atrás apenas da União e dos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro [1].
A Prefeitura Municipal de São Paulo (PMSP) representa o Poder Executivo, prestando os serviços de iluminação, coleta de resíduos sólidos, saúde, educação, habitação, urbanismo, transportes, assistência social, entre tantos outros. Sua organização é um tanto complexa: segundo o balanço anual de 2019 por ela apresentado, integravam sua estrutura administrativa 24 Secretarias, 32 Subprefeituras, 17 fundos e 9 entidades da administração indireta (autarquias, fundações e empresas estatais dependentes). Há ainda algumas empresas não dependentes, as quais não compõem o orçamento fiscal e da seguridade social do Município.
Todo esse aparato estatal e suas atividades são permanentemente acompanhados pelo TCMSP com base em critérios de relevância, materialidade e risco (já que nenhuma auditoria possui a capacidade de avaliar tudo que tenha ocorrido nas entidades sujeitas à fiscalização), que culminam na elaboração de planos anuais de fiscalização, aprovados pelo Plenário da Corte. Os auditores executam esses planos por meio da realização de trabalhos tendo os mais variados temas.
Exemplos de resultados para o cidadão
Além das auditorias obrigatórias, que são realizadas anualmente para subsidiar o parecer prévio sobre as contas do prefeito e o julgamento das contas dos demais gestores públicos municipais (a exemplo de Superintendentes de Autarquias, como o Serviço Funerário, e de Presidentes de empresas estatais, tal como a São Paulo Turismo), o TCMSP atua em diversas outras frentes de fiscalização, avaliando a execução das principais funções de governo, anteriormente citadas.
Um bom exemplo dessa atuação é o acompanhamento, em tempo real, dos principais editais elaborados pela Prefeitura para aquisição de bens, serviços e realização de futuras obras. Isso possibilita que eventuais problemas sejam detectados e solucionados antes que os contratos sejam firmados e que possam gerar danos financeiros ou operacionais.
Mas o acompanhamento das ações não se restringe à fase de contratação. Quando em execução, os contratos podem ser auditados para a verificação do cumprimento das suas principais cláusulas.
Nesse contexto pode ser mencionada a utilização, desde 2015, de testes laboratoriais como ferramentas de auxílio às auditorias. Com um pequeno investimento, os testes já foram aplicados em diversos objetos, por exemplo, nos uniformes escolares adquiridos [2] e nos serviços contratados de tapa-buraco [3] e manutenção/recapeamento da malha viária, permitindo identificar problemas quantitativos e qualitativos com a consequente elaboração de propostas de aplicação de penalidades às empresas envolvidas. Essa atuação busca verificar se aquilo que foi contratado foi efetivamente entregue, garantindo assim a boa aplicação dos recursos públicos da sociedade paulistana.
Outro exemplo da atuação do controle externo municipal de São Paulo com significativo retorno social é o “Programa de Visitas às Escolas”. Inspirado em modelo adotado pelo Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro (TCMRJ), o programa consiste num levantamento detalhado sobre os aspectos estruturais, administrativos e pedagógicos das escolas de ensino fundamental da rede paulistana. As conclusões da última edição [4] incluem a constatação da falta de sabonete líquido nos banheiros da maioria das escolas visitadas, passando pela inadequação da quantidade de livros didáticos disponibilizados aos alunos e pela ausência de professores em sala de aula no momento da visita, sinalizando ao poder público a necessidade de adoção de medidas corretivas para aprimorar a educação ofertada no Município.
Desafios e propostas de melhorias
Mesmo com esses bons exemplos listados, a promoção de algumas melhorias na estrutura e na gestão da Corte de Contas paulistana é fundamental para que os trabalhos, realizados pelos auditores de controle externo e julgados pelos conselheiros, sejam ainda mais efetivos, de modo a possibilitar o aprimoramento da gestão pública e a responsabilização de gestores envolvidos em eventuais irregularidades, de forma tempestiva e transparente.
Primeiro, devem ser instituídos prazos máximos para o julgamento dos processos [5], de modo a evitar a sua tramitação por tempo indeterminado, o que ocasiona insegurança jurídica para os auditados e riscos de prescrição de sanções, sobretudo quando não estão presentes aspectos relacionados à improbidade administrativa. Uma vez fixados os prazos, os fluxos processuais precisam ser padronizados e monitorados. Como já mencionado, tem pouco efeito prático o trabalho tecnicamente bem feito se as decisões, e respectivos encaminhamentos consignados nos relatórios dos auditores, não forem deliberados em tempo razoável pelos julgadores.
Outro ponto que merece atenção é a necessidade de se aprimorar a sistemática de planejamento das ações de controle externo. Deve-se escolher apropriadamente todos os objetos a serem auditados, tendo como fundamentos a relevância social daquilo que será examinado, a correta avaliação de risco e o custo/benefício do controle.
Em relação à transparência, foi editado, em 2016, um importante normativo interno no TCMSP, permitindo que os relatórios de auditoria sejam disponibilizados na internet, assim que finalizado o prazo para que o auditado ofereça sua defesa. Todavia, ainda é premente a adoção de políticas claras para a apresentação, publicação e disseminação dos resultados das auditorias, bem como para a comunicação com a mídia, cidadãos e organizações da sociedade civil, em linguagem e formato compreensível para os diferentes públicos-alvo. O acesso facilitado a esse conteúdo deve ser a regra.
Outra mudança estrutural direcionada à melhoria de performance do TCMSP diz respeito à necessidade de criação das carreiras técnicas de conselheiro-substituto e de procurador do ministério público de contas, a serem providas por meio de concurso. Embora previstas na Constituição Federal, tais carreiras ainda não foram implementadas no âmbito do controle externo paulistano.
Mesmo com o julgamento recente pelo Supremo Tribunal Federal das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 346 e 4776, que validou o número de 5 (cinco) conselheiros, entendemos que seja possível a adequação constitucional [6] do TCMSP, sendo crucial a observância da simetria em relação às carreiras técnicas constitucionalmente obrigatórias.
A criação dessas carreiras se justifica visando o pleno cumprimento à estrutura desenhada constitucionalmente e para que os ocupantes dessas carreiras tenham assento permanente no colegiado. Essa alteração possibilita que, ao se acrescentar elementos técnicos, a composição do corpo de julgadores se torne mais diversificada e equilibrada, tendo em vista que, atualmente, o colegiado é composto exclusivamente por conselheiros indicados politicamente.
Por fim, a forma de indicação dos membros do colegiado merece destaque. Em 2023, dois dos cinco conselheiros do TCMSP irão se aposentar e é importante que a sociedade paulistana se prepare desde já para acompanhar atentamente o processo de designação dos novos membros.
As discussões sobre o tema devem ser democratizadas para envolver, além dos poderes executivo e legislativo, outros atores, como os próprios auditores de controle externo, os meios de comunicação, as entidades representativas da sociedade civil, principalmente aquelas que fomentam o controle social, e mesmo qualquer cidadão interessado em participar desse importante debate.
Será essencial que os nomes escolhidos tenham a qualificação mínima estabelecida legalmente e, mais do que isso, que tenham o perfil e a capacidade técnica necessária para consolidar os avanços conquistados nos últimos anos e conduzir as mudanças necessárias que ensejarão o aprimoramento do controle externo exercido na cidade de São Paulo, o que decerto impactará positivamente a qualidade de vida dos seus habitantes.
Autores:
Fernando Celso Morini. Auditor de Controle Externo do Tribunal de Contas do Município de São Paulo. Presidente da Associação dos Auditores de Controle Externo do TCMSP. Especialista em Planejamento e Gestão de Cidades pela PECE POLI USP e em Administração de Empresas e Gestão de TI pela FGVSP.
Jorge de Carvalho. Auditor de Controle Externo do Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCMSP). Especialista em gestão pública, contabilidade governamental, direito público e controle municipal. Autor de livros sobre contabilidade e auditoria governamental.
João Roberto Fernandes de Lima. Auditor de Controle Externo do Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCMSP). Diretor de Comunicação da Associação dos Auditores de Controle Externo do TCMSP. Mestre em Gestão e Políticas Públicas pela FGVSP.
[1] Conforme Sistemas de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro (Siconfi). Base: RREO 1º bimestre (balanço orçamentário/dotação inicial/despesa total). Consulta em 08/06/2020.
[2] Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/relatorio-aponta-falhas-nos-uniformes-escolares-distribuidos-pela-prefeitura-de-sp-em-2017.ghtml
[3] Disponível em: http://g1.globo.com/videos/v/g1/6356555/
[4] Relatório disponível em: https://portal.tcm.sp.gov.br/ConsultaProcesso/DocumentoEtcm?nuProcesso=TC0041192019&nuOrdem=650068
[5] A Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) editou a Resolução nº 01/2014 nesse sentido, aprovando a diretriz “agilidade no julgamento de processos e gerenciamento de prazos pelos Tribunais de Contas do Brasil”.
[6] Conforme art. 73, § 2º, incisos I e II, c/c art. 75 da CF/88.
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